"Com passos decididos, irrompeu o salão. Trazia uma malinha preta, um fraque preto, uma camisa branca e um laço. Sem parar, fez-nos uma pequena vénia com a cabeça e sorriu-nos. Parou-se junto à mesa diante de nós. Pousou a malinha e, como se estivesse a abrir o baú de um tesouro com as pontas dos dedos, abriu-a. Lá de dentro, retirou um instrumento muito polido que tinha, mais ou menos, a forma de uma cabaça com linhas a atravessá-la. Retirou também uma vareta. Segurou o instrumento da música com uma mão e a vareta com a outra. Olhou-nos sério. Pousou o instrumento da música no ombro e assentou-lhe a vareta sobre as linhas.
Um som ou alguma coisa verdadeira a existir. A nascer, a crescer, a viver. Uma coisa verdadeira e infinitamente bela a agitar-se no ar do salão. Um lamento. Uma angústia a transformar-se de repente numa alegria grande. A caminhar, a correr, a dançar. Um sonho bom a transformar-se numa alegria branda. Glória e espanto. Um som a existir muito. O ar do salão cheio de um milagre invisível. Um segredo profundo a atravessar-mos. Uma emoção a continuar para onde não se imagina. A vida condensada e repetida. Um momento ao qual não tínhamos a certeza de poder sobreviver. Recordações e a explicação simples da vida. O mistério mais impossível e a revelação mais clara. Cores: branco, azul, verde, branco, luz, negro, azul, céu, branco. Nenhuma cor. Agua. Silêncio a falar a língua da claridade numa voz de manhãs. Um som ou alguma coisa verdadeira. Tudo isto e nada disto era a música."
In Uma Casa na Escuridão, José Luís Peixoto